sábado, 14 de junho de 2008

Henrique Carvalho Ghidetti

Não foi correto tratarem-no assim, não, não foi mesmo. Ele tinha preferências, ora, como todos. Seria aquela mania tão terrível assim? Nada que matasse, desonrasse ou aleijasse ninguém. Era o tipo de coisa que ele poderia fazer por toda a vida sem provocar mal algum a quem fosse. Silencioso. Discreto. Há coisas que se fazem, outras que se calam. Elementar, ou nem tanto.

A bem dizer, não há vida que, dissecada com cuidado, não traga à tona vexantes vergonhas inconfessáveis, daquelas capazes de causar verdadeira morte moral.

Ao sair do trabalho naquele dia, ele entrou no ônibus sentindo-se mais despido do que nunca. Como foi difícil fingir levar tudo na esportiva (expressãozinha imbecil). O peito opresso, esmigalhado, sob a gargalhada geral, de que só ele não participava, o esforço sobre-humano na busca de aparentar que aquele vexame, de dimensões planetárias, não lhe doía, não o abalava. Era o tão velho e comum pesadelo, nem por isso menos apavorante, nem por isso menos doloroso, de nos flagrarmos sem a parte de baixo da roupa em plena avenida, na hora mais movimentada de todos os dias. Era aquilo, só que real, concreto e palpável.

O ônibus entrou em marcha. Adiante de onde ele se sentava, duas fileiras de assentos para frente, estavam dois colegas do trabalho (se aqui cabe tal designação; coleguismo, presume-se, requer um mínimo de camaradagem). Ele se esforçava a fim de não olhar para aqueles cretinos, a fim de não olhar para coisa alguma, mas sentia claramente, pelo canto do olho, enquanto fingia prestar atenção na rua, que os dois imbecis olhavam-no e olhavam-se entre risotas e murmúrios. Difícil ser mais exposto.

Sentia ódio daquela gente, mas também se sentia culpado, responsável por não ter sido capaz de antever os infortúnios que o dia lhe reservava. Maldição.

Soubesse o que aconteceria, ele nem sequer teria saído de casa, ou, se acaso fosse imprescindível comparecer no trabalho, teria ido em seu automóvel. Não gostava de dirigir, não tinha gosto algum pela atividade, mas, para ser poupado do desnudamento público por que passara, tranqüilamente que ele poria seu carro na rua, faria qualquer coisa que o livrasse de tanta humilhação. Qualquer um faria.

Dentro do coletivo cada vez mais cheio, a sensação, mais que de nudez, era de se encontrar na iminência de sofrer um apedrejamento.

Foi então que ele atinou. A mente, sob efeito de contrariedades, costuma mergulhar num embotamento tamanho. Só depois de algum tempo, ele se deu conta de que poderia pegar um táxi. Na parada seguinte, acotovelou-se para fora do ônibus e pegou um táxi num ponto ali perto.

Fora muita baixeza, era difícil até dar um nome para aquilo. Só podia ser obra de sua ex-mulher, claro que com a colaboração de algum desafeto dele no trabalho.

Ele não parava de se perguntar como a vida não era capaz de dar certos sinais, de anunciar certos fatos, de emitir um alerta qualquer que nos prevenisse de estarmos na iminência de uma desgraça, a um passo de uma vergonha imensurável, de uma lesão mortal, de uma perda irreparável. Pois ele fora para a morte (o que lhe acontecera só não fora morte no sentido físico) sem preparativo algum, fora para a morte certo de ir para mais um simples e corriqueiro dia de trabalho.

A coisa tinha de ser em público, de supetão. Totalmente de surpresa, explodiu em sua cara aquela bomba que rompeu um invólucro cheio de vergonha, de segredo, de conflito íntimo, um invólucro cujo conteúdo se espalhou por todo lado, impregnando as paredes, os móveis, as roupas, a face, a pele de vexame, de humilhação, de ignomínia.

No táxi, sentado no banco de trás, o rosto totalmente virado para o lado, quase colado no vidro da janela lateral, os olhos abertos porém sem nada ver da rua, ele ia passivo, deixando-se torturar pela memória, que em sua conturbada mente repetia a cena de um jeito exaustivo, com toda minúcia possível e impossível.

O momento fatídico era repetido sem parar, sem pausa, sem intervalo, cada vez de um ângulo distinto, cada vez dando ênfase a um novo aspecto. Sua mente mostrava-lhe a cena mais de longe, mais de perto, em câmera rápida, normal, lenta, quadro-a-quadro. Parecia que nunca mais deixaria de sofrer, que a ferida nunca iria se fechar, que aquilo ia permanecer-lhe fixo na idéia como um prego batido em seu crânio.

Chegara ao trabalho da maneira usual. Fizera um discreto cumprimento a todos na sala e quase ninguém lhe respondera, o que também era usual. Talvez tudo se mostrasse de uma normalidade excessiva, se é que havia algo de estranho naquele dia para se notar. Se assim foi deveras, ele não teve aptidão para se dar conta do sinal que o destino lhe dava.

Como seja, ele se sentou diante da mesa e, ao abrir a gaveta para, como de hábito, pegar seus utensílios cotidianos, a inequívoca surpresa.

Lá dentro, no lugar do material de trabalho, uma infinidade de meias, nenhuma parecia nova, a maioria era bem velha e não devia ter par, decerto recolhidas de trapos e panos velhos nas casas dos colegas. Meias das mais variadas cores, modelos e tamanhos. De repente, como se um abismo, como se o fundo de um poço muito profundo, atropelou-o a compreensão tardia, tardia demais de que o destino decidira não o poupar.

Ele quedou imóvel por alguns segundos, presumia que fossem segundos, pois não era capaz de afirmar nada com segurança acerca daqueles momentos, parecia-lhe que ficara imóvel, parecia-lhe que ficara em silêncio, parecia-lhe que foram segundos, segundos imensos, séculos de segundos sob o efeito do choque. Mas tudo não passava de impressões, além da inquestionável certeza de estar exposto à gargalhada geral. Presumia que fora capaz de manter uma aparência normal e tranqüila.

Percebia que, por trás do quadro de tranqüila rotina que imperava no escritório até a abertura da gaveta, reinava ansiedade, impaciência, uma curiosidade louca, difícil de conter naquela espera para vê-lo pego na armadilha.

E então, ao seu redor, instalou-se a zombaria e o gracejo, um espírito grosseiro de brincadeira, que para ele, claro, tinha um ar puramente macabro, cercava-o, quase roubava-lhe o ar que necessitava para viver.

E por cima das meias, na gaveta, estava a foto, ou, mais provável, uma reprodução da foto. Sua ex-mulher, só podia ser ela, era ela, só podia, a mente por trás daquilo. Mas ela sempre jurara, após ter-lhe entregado, em troca de um grande favor, o que dissera ser o original e único exemplar da fotografia, ela sempre jurara não ter ficado com cópia alguma. Naquele momento, da forma mais terrível, ele veio a descobrir a mentira. Naquele momento também veio-lhe a certeza de que ela devia ter feito várias reproduções, evidente, polaróides são pouco duráveis e, se ela queria faltar com a palavra e guardar a imagem vergonhosa como um trunfo para acabar com a vida dele, era de se esperar naturalmente que, para se precaver de acidentes, ela tivesse providenciado não uma, mas várias cópias do instantâneo.

E o resultado de tanta previdência estava ali, sob a forma de caçoada geral. Ele fazia cara (a que custo) de quem não fora absolutamente afetado pela brincadeira, apesar de todo o ódio e de toda a vergonha a devorar suas entranhas em chamas.

Não existia dúvida possível, ali havia a mão de sua ex-mulher. Certamente aquele era um modo bastante efetivo de se vingar das provas de adultério que ele, durante o tumultuoso processo de separação, apresentara em juízo. Isso a deixara em grande desvantagem, tanto na partilha dos bens quanto na guarda da filha.

Desde muito jovem, ele tomara consciência de seu ridículo. Ainda criança, saindo da primeira infância, diante das exortações dos mais velhos para que cessasse o hábito, pensando em se resguardar sem abrir mão do que era de seu agrado, fizera-se extremamente introvertido, isolado. Condenou-se à solidão. Em casa, na rua, na escola, ele procurava ser invisível. Na escola, a grande maioria, aí inclusos professores, funcionários e alunos, não tinha a menor idéia de sua existência, embora ele comparecesse todo dia. Em casa, dentre os irmãos, normalmente ele era o grande esquecido, em geral sendo lembrado somente quando, em conseqüência mesma do vício, passava horas trancado no banheiro, impedindo a outros o uso do recinto.

Sua futura ex-mulher, quando o conheceu, foi levada ao equívoco de ver em seus modos tímidos, em seu olhar fugidio, indícios de uma alma sensível, de uma rica vida interior, quiçá até mesmo de pendores artísticos.

Ele, por sua vez, até então só tivera na repulsa o sentimento mais profundo que conseguira despertar numa mulher. Quando se deu conta de que aquela garota, uma das mais desejadas da escola, estava interessada nele, a surpresa levou-o às nuvens.

A paixão inesperada, mais que inesperada, encheu-o de auto-estima e levou-o até a arriscar uns versinhos. Só não foi bastante para fazê-lo abandonar o hábito solitário.

Lendo os versos que ele lhe escrevera, ela acreditou ter encontrado a confirmação de suas doces suspeitas e se encheu de uma alegre e inofensiva vaidade ao se supor elemento motivador daquele talento, uma musa.

Casaram. E foi quando vieram à tona os enganos. Até então, muito embora já tivessem tido toda intimidade sexual possível, não haviam ainda compartilhado o cotidiano.

Já na lua-de-mel, começou o mal-estar e o estranhamento. Por causa, é evidente, das prolongadas e repetidas permanências dele no banheiro. Ela passava a maior parte do dia, e mesmo da noite, sozinha, esperando em vão vê-lo sair da clausura.

Era mais que natural que aquilo a deixasse preocupada. Começou a conjeturar se ele não a desejava mais, se passara a achá-la feia, desinteressante.

Tendo, de início, dado a desculpa de que estava tendo problemas digestivos com a comida diferente do lugar (a diferença não era tanta assim, estavam a pouco mais de cem quilômetros de casa), passados dois ou três dias, a qualquer pergunta dela sobre o que sucedia, ele, sem conseguir esconder a irritação, dizia que tudo estava bem, pedia que o deixasse em paz, alegava que não fazia nada de errado no banheiro, apenas que necessitava ficar sozinho.

Cada vez de menos bom grado, ela, após as pungentes declarações dele, calava suas queixas e ligava o televisor, ou ia para a piscina do hotel, ou fazia algum passeio sozinha. Naqueles dias, um novo hábito se integrou em sua vida: fosse aonde fosse, ela sempre ia acompanhada de um copo.

Naturalmente, o azedume só fazia aumentar entre os recém-casados: ela, quase sempre embriagada, dia após dia tornando-se mais e mais irascível; ele, quase sempre trancado no banheiro.

Até que um dia ele esqueceu de passar a chave na porta.

Tinham acabado de tomar o café da manhã. Ele se levantou correndo da mesa e foi para seu confinamento; ela permaneceu sentada e deu início a sua tarefa diária de dizimar as reservas etílicas do frigobar.

Um lampejo, enquanto o táxi rodava, interrompeu o fluxo de suas tristes recordações. A idéia veio depois de percorrer alguns quilômetros. Ia imerso em suas dores e, de súbito, lá estava ela, inteira, a idéia, como que para alegrá-lo um pouco.

Inicialmente dera o endereço de sua casa ao motorista. Depois de acolher o plano que de sua mente brotara inteiro, completo, mandou-o seguir em sentido contrário. Decidiu ir à casa de sua ex-sogra, desde a separação residência também de sua ex-esposa.

Durante o novo trajeto, oposto ao anterior, ele se lembrava do advogado que o representara na separação explicando-lhe que, perante a lei, não existe isso de ex-sogra ou ex-sogro.

Sogro é sogro, ad aeternum, frisara o causídico, como se pinçasse, do fundo de um baú impregnado de naftalina advocatícia, a expressão latina. Sentindo-se, após a rebuscada explicação, tão ignorante quanto antes, talvez até por isso mesmo, ficou-lhe na memória a frase, dita numa estudada atitude de sereno saber (sogro é sogro, ad aeternum), que agora se repetia em sua mente de modo involuntário, e ininterrupto, e indesejado.

A sogra, permitam-me que me refira a ela apenas como sogra. Aproveitemos o permissivo legal e tornemos o texto um pouco, só um pouquinho, menos pesado. Já basta a toda hora ficar repetindo a palavra ex-esposa (se não se disser ex-esposa, então será necessário dizer ex-mulher, ex-cônjuge ou recorrer a fórmula ainda mais complicada). Se sogra é para sempre, então que sogra tão-só ela seja.

Voltando à história, é muito provável, quase certo, que a sogra nem tenha percebido que morreu. Era noite, sem dúvida noite sem lua, e as luzes do quintal estavam apagadas. Ela, a sogra, ouviu ruídos vindos da garagem numa hora em que não era para haver ninguém lá, e saiu para verificar. No meio do caminho distinguiu um vulto vindo ao seu encontro no quintal escuro. Ela não era mulher de se apavorar à toa, enviuvara cedo e nunca mais casara, assumindo sozinha todo o encargo da casa e dos filhos. Diante daquele vulto, ela também não teve pensamentos relacionados a casos de estupro, assalto, assassinato, nem a reações do tipo gritar, chorar, desmaiar ou se esconder, apenas parou e procurou forçar a vista na tentativa de divisar as feições do visitante. Finalmente, o vulto se aproximou o suficiente (vinha num passo firme, decidido) para que nele ela reconhecesse seu genro (não há ex-genro, tanto quanto não há ex-sogra), que segurava, atravessada diante de si, uma coisa longa, uma haste ou coisa assim, com uma extremidade larga e achatada, uma enxada, uma pá, qualquer coisa desse tipo.

As relações entre os dois, genro e sogra, nunca ficaram além nem aquém de uma reservada polidez. Ambos sempre fizeram o máximo para só se encontrar quando inevitável. Por isso que ela estranhou muito vê-lo ali, naquela hora, ainda mais depois de separar-se da filha dela.

A velha senhora chegou a fazer menção de perguntar por que ele viera sem avisar e entrara sem nem tocar a campainha. Não deu, ele sequer se deteve para preparar o golpe, desferiu-o rápido, seco, de cima para baixo, com uma força e uma destreza que nunca supusera ter, da esquerda para a direita, segurando o cabo com as duas mãos, uma a cerca de um terço e outra a cerca de dois terços do comprimento.

A sogra recebeu o impacto em cheio no lado direito da cabeça. De pronto desabou no chão, inteiramente defunta, com um filete de sangue a sair-lhe do canto de um olho, como uma lágrima, e outro do canto da boca. Nenhum dos dois sangramentos, todavia, prosperou, naquele corpo já não havia mais pulso.

Quando chegou à rua de seu destino, ele pediu ao taxista para deixá-lo umas casas antes do endereço da sogra. Evidente, queria entrar sem ser notado, uma surpresa, ainda que não boa. O portão da frente, como sempre, estava aberto, foi fácil entrar e ir à garagem sem fazer barulho. No fundo da garagem, guardava-se de tudo, aquela área de despejo que toda casa tem, inclusive o ferramental para o trabalho de jardinagem e para pequenos consertos e reparos.

Sua intenção primeira era de usar um machado. Revirou todos os utensílios e bugigangas existentes no fundo da garagem. Nada de machado. Precisou se contentar com a pá.

Matar a ex-esposa foi ainda mais fácil. Se não mais fácil, decerto mais aprazível. Ela estava sentada no sofá da sala, bêbada, como sempre (mesmo chegando pelas costas, sorrateiro, ele conseguia perceber, apenas pelo posicionamento da cabeça, o estado etílico da mulher com quem coabitara por anos), assistindo à televisão, o som em volume bem alto, nem notara os ruídos vindos da garagem e do quintal. Ao contrário da mãe, porém, a filha não morreu logo no primeiro golpe, recebido por trás, também no lado direito da cabeça, que fez seu corpo pender para a esquerda e apoiar-se molemente sobre o braço do sofá, no qual ela começou, débil e infrutiferamente, a procurar apoio para se erguer, enquanto ofegava e tartamudeava.

Ele então deixou-a de lado por uns instantes e percorreu todos os outros cômodos da casa, até se assegurar de que lá não havia mais ninguém. Olhou os arredores pelas janelas, a vizinhança não dava sinal de ter notado o que se passava.

Voltou à sala. A ex-mulher tinha caído do sofá e agora, estendida no chão, tentava se arrastar e gemia vagamente pela mãe. Daí que todo o ódio dele veio à tona. Pegou-a pelos cabelos e a arrastou para fora, largando-a junto ao cadáver materno, na esperança de que ela ainda fosse capaz de ver e entender.

Provável, entretanto, que a pancada recebida na sala ou a deixara cega ou a privara do discernimento. Ela não pareceu capaz de reconhecer a mãe, tampouco de entender que estava ao lado de um cadáver.

Algo frustrado por não poder horrorizar a ex-mulher com a morte da própria mãe, ele resolveu terminar o serviço.

Ele gostaria de ter podido prolongar indefinidamente o momento, mas não estava fora de si a ponto de esquecer a gravidade da situação. As coisas não poderiam permanecer no mesmo pé ad aeternum (de novo a maldita expressão). Na época, a casa só era habitada pelas vítimas, mãe e filha. A empregada não dormia no trabalho. A probabilidade de aparecer uma visita, àquela hora e naquele dia, era pequena, mas não de todo inexistente. Melhor terminar logo.

Na casa havia um cão de guarda, cujo melhor amigo era o próprio genro assassino, sempre o único a dar-lhe alguma atenção. Os outros, quando muito, punham água e comida para não deixá-lo morrer. Apenas ele, o genro, dava-se ao trabalho de sair com o bicho para passear ou de trazer-lhe petiscos, além de, quando necessário, dar-lhe banho e levá-lo ao veterinário. Em conseqüência, o cachorro nutria por ele uma estima incondicional. Certamente por isso que não dera nem um latido denunciando a matança promovida por seu amigo.

O genro várias vezes até pedira à sogra que lhe desse o cão, principalmente depois da separação. Ela, todavia, sempre lhe negara o animal, talvez por considerá-lo necessário à segurança da casa, talvez por mero espírito de vingança. Como a sogra, entretanto, já deixara de ser obstáculo, o genro tomou a firme decisão: levaria o cachorro consigo. Bastava concluir o serviço e livrar-se dos corpos.

Olhou para a ex-mulher, que agora, em silêncio, jazia a seus pés. Talvez já estivesse morta, provável. Não obstante, pareceu-lhe ver pequenos movimentos da caixa torácica, como se ela ainda respirasse bem fraquinho. Melhor garantir o resultado. Desferiu-lhe muitos, muitíssimos, inúmeros golpes de pá na cabeça. Quando se deu por satisfeito, estava recamado de suor, respirava desordenado, ofegante, o corpo irradiava formigamentos. No chão, em lugar da cabeça, uma massa indistinta, predominantemente constituída de sangue, ossos e cabelo.

Cerca de vinte anos antes, naquela fatídica manhã da lua-de-mel, como sabido, ele, em sua ânsia incontrolável, esqueceu de fechar com chave a porta do banheiro. Ela, ainda na mesa do café tomando a terceira dose do dia, percebeu, ou melhor, não percebeu o som da chave sendo girada na fechadura.

Em relação à mania de reclusão do marido, aqueles poucos dias de vida em comum (é um trocadilho imbecil, mas parece mais apropriado dizer “vida incomum”) bastaram para enchê-la de ressentimento e curiosidade. Sob os efeitos do álcool, evidente que a emoção, como canta o gênero brega, passou a falar mais alto no governo das ações. Por isso, ela resolveu aproveitar a oportunidade de descobrir o que acontecia para dentro da porta do banheiro. Quem sabe, descobrir e registrar. Correu até o quarto e pegou a polaróide.

Voltou com a máquina fotográfica pronta para disparar e se pôs diante da porta do banheiro. Com um pontapé, abriu-a de uma vez só. Lá dentro, ele não teve tempo de fazer nada, assustou-se com o estrondo da porta se abrindo e, logo em seguida, foi cegado pela forte luz do flash.

Ele gostava muito, demais, tinha autêntica adoração por meias, de nylon, de algodão, finas, grossas, curtas, longas, nada disso era determinante, ainda que certos tipos lhe dessem mais prazer. Importante mesmo era que fossem de mulher e, acima de tudo, usadas. Por isso que lhe era tão difícil sair de banheiros onde encontrasse peças femininas em cestos de roupas para lavar.

Desde a infância, ele sentia aquela pulsão de levar coisas estranhas à boca, pulsão à qual, por causa das freqüentes repreensões dos adultos e das zombarias dos pequenos, logo se associaram montes de culpa e vergonha. Era um hábito tolerado em bebês, mas inaceitável até em crianças um pouco maiores, quanto mais num adulto feito. Ele, porém, preferiria morrer (ao menos assim pensava) a abandonar as degustações. Logo chegou à conclusão de que só poderia manter sua mania tornando-se um solitário, um assíduo freqüentador de banheiros.

Conforme sua sexualidade se desenvolveu, a compulsão oral foi se especializando em peças femininas. Finalmente se restringiu às meias. Não podia ir a uma casa em que morassem mulheres sem pedir para usar o banheiro, onde, se encontrasse um cesto de roupas ou coisa parecida, punha-se a revirá-lo em busca de meias. Aprendera, apenas pelo olfato, a distinguir as femininas das masculinas.

Claro, aquela mania de se enclausurar em banheiros e explorar cestos de roupa suja provocava muitos constrangimentos. Quase que seguindo uma regra de reciprocidade, ele e as demais pessoas passaram a se evitar mutuamente. Muitos consideravam extremamente desagradável aquela presença oblíqua, furtiva, aquele jeito dele de não querer se fazer notar, que o tornava ainda mais notável e notado.

Ele era introvertido ao extremo, parecia estar sempre em guarda, um esquisito de primeira, com mania de se trancar em banheiros, nada vendo além de seu objeto de desejo, dissimulado sob uma muito pouco convincente sociabilidade. Muita gente, sem jamais poder precisar por quê, tinha-lhe uma aversão instintiva.

É claro, já houvera várias tentativas de flagrá-lo no banheiro. Nenhuma das anteriores, entretanto, lograra êxito cabal. Nas outras vezes, ainda enquanto abriam a porta do banheiro, ele sempre conseguira, de um jeito ou de outro, esconder o que fazia. Não que não restasse uma suspeita no ar, sentia-se perfeitamente a dissimulação. A prova indubitável, porém, nunca aparecia.

Naquele dia da lua-de-mel, porém, a porta foi aberta rápido demais. O flash estourou-lhe em cheio nos olhos. Quer dizer, ele não só foi visto como também fotografado (sentado no vaso sanitário, calça arriada, mão entre as pernas e uma meia de sua mulher na boca, uma meia usada). Tudo registrado.

Sem nem ver o que ele fazia, a esposa bateu a foto. Depois disso, ela pôde prestar atenção no pobre diabo tentando se compor rapidamente, sem saber se subia a calça, se tirava a meia da boca, se falava com a mulher. De início, ela ficou incrédula, olhando perplexa para a cena. Depois foi lhe crescendo por dentro um riso irrefreável. Quando deu por si, quase rolava no chão de tanto rir.

Já ele, quase em choque de tanto pânico, desistiu de tentar arrumar a roupa, cuspiu a meia no chão, levantou-se e, com a calça nos calcanhares mesmo, saiu a persegui-la para tentar se apossar da foto. Sem sucesso. Com sobra de tempo, ela correu e se trancou no quarto. Lá dentro, engasgando num riso histérico, deitou-se na cama para observar a imagem se formar no papel fotográfico instantâneo (o imbecil, sentado no vaso, genitais na mão, olhos arregalados de surpresa e gozo, boca cheia com um pé do par de meias que ela usara no dia anterior). Teve nojo, não apenas do fato de seu marido pôr na boca meias usadas, mas muito mais de toda aquela dissimulação, de todos os ardis de que agora se dava conta. Muito mais que do fato físico de ele se deleitar levando meias usadas à boca, ela teve nojo de sua falta de confiança, de sua falta de sinceridade.

Ele, arrimado na porta do quarto, desfazia-se em súplicas abjetas e lacrimosas, que ela nem conseguia perceber graças à crescente confusão mental.

Aos poucos foi dando por si das coisas que o marido lhe dizia, de toda a falta de brio demonstrada naquela atitude e naquelas palavras. Era um frouxo, um fraco, um esquisito, incapaz até de compartilhar suas esquisitices mesmo com a própria mulher, que afinal percebia o porquê daquela vida passada no banheiro.

Com o tempo, de tanto precisar saborear suas meias às escondidas, aquele ato, para ser inteiramente prazeroso, implicava solidão e recolhimento.

Só então ela percebeu quão covarde era seu marido, quão pusilânime e mesquinho naquele seu modo de vida de viver rastejando nas sombras, mendigando migalhas de tolerância e de leniência. Daí, numa dessas viradas de humor típicas de quem se encontra com altos teores etílicos no sangue, num átimo desvencilhou-se das gargalhadas convulsivas e mergulhou num choro sufocante. Questão de segundo. Depois, qualificou o marido, em voz bem alta, com algumas palavras de baixo calão e silenciou por dois dias, nos quais não deixou o quarto, não comeu, não deu sinal de vida. No terceiro dia, ela abriu a porta e saiu, decidida a abortar a lua-de-mel.

Voltaram para casa e passaram a viver vidas estranhas (em tantos sentidos). Permaneceram casados, todavia, por mais vinte e poucos anos. Era conveniente. Para ela, pelo dinheiro que ele punha em casa. Para ele, por acreditar que, casado, ostentaria uma aparência mais convincente de normalidade.

A vida sexual do casal era praticamente nenhuma. Ela se desafogava em amiudados adultérios. Ele, por sua vez, ficava com suas meias e seus segredos, feliz. Quando não estava dormindo ou tendo relações sexuais, ela adquiriu o hábito, desde a malfadada lua-de-mel, de fazer uso de volumosas dosagens alcoólicas. Raras eram as discussões acaloradas, na muito maior parte de seu convívio imperava uma calma sepulcral. Esporadicamente, deveras muito esporadicamente, por conta talvez de romper com a rotina, os dois tinham relações sexuais.

Tiveram uma filha. Difícil dizer se apócrifa a criança. Disso, entretanto, ele nunca fez caso, desde o começo dedicou-se a ela de todo o coração. Depois da separação, em vista de como tudo se deu, com as provas cabais da contumaz conduta adúltera da esposa, mais a constatação pessoal, feita pelo juiz, do amor daquela mulher por uma garrafa, ele, o futuro ex-marido, decerto faria jus à guarda da menina. Porém, quando a separação recebeu o selo oficial, a filha já atingira a maioridade, podia escolher livremente com quem ficar. Escolheu o pai, sem por isso deixar de dedicar uma pequena atenção à mãe, fonte de constantes ressentimentos. Apesar das visitas até que freqüentes, a mãe percebia facilmente que o dono daquele amor era o pai. E ela, mãe, remoía mágoas profundas por causa disso, acusava o ex-marido de jogar baixo, de comprar, graças a sua melhor condição financeira, o amor da menina com mimos e regalias, o que não deixava de ser verdade. Muito provável que essa situação também tenha contribuído para que ela o expusesse perante os colegas de trabalho.

Ele limpou o sangue da casa e de si, colocou os corpos no porta-malas do carro maior que estava na garagem, o da finada sogra, acomodou o cachorro no banco a seu lado e já ia ligar o motor para sair quando ouviu a voz:

— Pai?

Sua filha. Viera fazer uma visita, encontrara a casa fechada, ouvira barulho de motor na garagem e para lá se dirigira, entrando pela porta dos fundos, o que impediu que ele a visse até chegar ao lado do carro e chamá-lo.

Logo ela começou a fazer perguntas: por que ele estava lá, onde estavam a mãe e a avó, o que ele fazia com o carro da avó, ainda mais com o cachorro dentro. O pai permaneceu mudo. Porém, conforme ela formulava cada pergunta, em sua mente começaram a se esboçar respostas cuja nitidez aumentava quanto mais se estendia o loquaz silêncio paterno. E foi num crescendo de apreensão que ela se viu obrigada a perguntar:

— Pai, de novo? Ah, pai, não pode ser, de novo não, pai!

Ele continuou em silêncio, desviou o olhar, a cabeça pendeu, o queixo encostou no peito, escapou-lhe uma lágrima. Ali estava a confirmação que a filha esperava não ter. Ela sentiu algo como um espasmo, talvez de choro, talvez de náusea, mas logo se concentrou no aspecto prático.

— Precisamos nos livrar dos corpos. Onde o senhor os colocou?

Ele permanecia naquela posição, cabisbaixo, alheio. A filha perguntou-lhe novamente pelos corpos. Quase sem sair de seu torpor, o pai respondeu que estavam no porta-malas. E o cachorro? Pondo-se um pouco mais alerta, ele disse que não haveria problema em levá-lo, moravam no lado oposto da cidade, ninguém da família da ex-mulher ia lá, se ele e a filha guardassem silêncio, era praticamente impossível que alguém estabelecesse uma conexão entre o bicho e a casa cujas moradoras estariam desaparecidas. Nesse ponto do discurso, ele recuperou a firmeza, o cachorro iria morar com eles, estava decidido.

— Então vamos logo, antes que alguém apareça.

— Para o lixão?

Seguiram para o lixão. Cerca de dois anos antes, ele recebeu em casa uma visita do pai e do irmão mais velho. Os dois vinham com cara de velório, dizendo precisar ter uma conversa séria. Traziam um envelope pardo grande, cheio de fotografias, provas irrefutáveis obtidas por um investigador particular. Além das fotos, havia também um relatório transbordante de minúcias: horários, endereços, placas de automóveis. Era fato mais que certo e documentado, sua esposa o traía, de longa data era uma adúltera persistente.

Depois de expor o caso, o pai e o irmão procuraram arrancar dele uma promessa de que providências seriam tomadas. Ele se fechou num silêncio atormentado. Não queria tomar providência alguma, não queria mudar sua vida, deixassem tudo daquele jeito mesmo, ele já se habituara, aquela era a única forma de ter sua própria família que ele conhecia, haja vista suas singulares preferências. Era isso, em linhas gerais, o que queria dizer àqueles dois. Mas nunca soubera dizer não, muito menos, exceto quando pressionado ao extremo, impor seus pontos de vista. Esquivar-se fora tudo que aprendera na vida, vítima de uma introversão obsessiva.

O pai e o irmão, porém, não desistiam.

— A família toda já sabe como funciona esse seu casamento! Será possível que você pense em deixar tudo como está? Será possível que você aceite viver assim: corno, frouxo e conformado?

Essas palavras, proferidas pelo irmão mais velho no auge da impaciência diante da hesitação do irmão mais novo, quase fizeram com que este reagisse. Mas foi o pai que se ergueu e energicamente mandou o mais velho se calar, embora fosse óbvia sua concordância com o teor da invectiva.

E assim prosseguiu aquele encontro. Os dois visitantes instando-o terminantemente a virar a mesa, e ele contra a parede, querendo dizer que nunca faria aquilo, embora certo de que, assumindo oficialmente tal posição, acabaria de vez com o pouco de respeito que a parentela ainda lhe dispensava.

Súbito, surgiu-lhe claramente o que aquela conversa representava. Era o fim de seu casamento, o fim de sua tranqüilidade. Havia quanto tempo que descobrira as traições da mulher? Quinze, dezesseis anos. Pouco se lhe dava. Evidente que seria melhor se ela fosse fiel, mas muito provavelmente ela também ficaria mais satisfeita se ele se dedicasse mais a ela e menos a sua tara. Deixassem tudo como estava.

A partir daquele momento, no entanto, sob a pressão familiar, ele seria obrigado a pedir o divórcio. Seu pequeno paraíso, está bem que fosse um paraíso algo safado (era o que o destino lhe concedera), acabava de desmoronar.

Ao tomar consciência disso, ele se encheu de ódio contra quem viera pôr a nu suas mazelas conjugais, fatos que ele conhecia muito bem e que desejava com ardor que permanecessem ocultos. Pela primeira vez na vida matou.

Sem mais delongas, cumpre apenas informar que ele se aproveitou de um momento em que o pai foi ao banheiro e o irmão ficou só na sala. Usando uma chave de fenda e um pedaço de corda de varal, deu cabo dos dois sem nenhum grito ou resistência.

E enquanto ele estava na sala, contemplando seus dois primeiros cadáveres, sua filha chegou.

Ao ver a menina deparada com os corpos do tio e do avô, teve certeza de que sua vida estava acabada. Claro, ela contaria o que vira. E, por causa disso, ele iria para a cadeia. Sabia por demais que, contra sua própria filha, não seria capaz de fazer nada, absolutamente nada.

A verdade, porém, é que a menina desmentiu-lhe o temor portando-se de modo magnífico. Não se horrorizou, nem mesmo ensaiou olhares de asco e recriminação para o pai por descobrir assim de inopino toda a violência de que ele, aparentemente tão pacato, era capaz.

A bem dizer, num primeiro momento, a filha deveras se assustou ao dar com a cena do crime, mas era seu pai o criminoso, o pai que sempre a protegera e apoiara, muito mais que a mãe, muito mais que aquele tio e aquele avô, que, como todos os outros parentes, sempre encararam seu genitor com benévolo desdém. O susto diante do inusitado logo se converteu em medo do que poderia advir daquele ato, medo das conseqüências legais. Esse o horror expresso nos olhos dela ao encarar o pai.

— A gente precisa dar um jeito nisto antes que a mamãe chegue.

Ao ouvir essas palavras, o pai saiu da atônita perplexidade em que caíra. Juntos, os dois arrastaram os corpos até o carro e limparam os vestígios. Depois de tudo pronto, já no veículo em movimento, veio-lhes a indagação: onde deixar carga tão suspeita, ou melhor, reveladora? Inexperientes nas artes do crime, pararam numa lanchonete a fim de conversar e decidir qual o melhor lugar de desova.

Após muitas conjeturas, a escolha recaiu no lixão municipal, idéia da filha. Lá, mais que um mero depósito de resíduos e imundices os mais variados, existia um verdadeiro bairro, um surpreendente aglomerado de numerosas palafitas, milhares, com gente comendo do lixo, andando sobre o lixo, recolhendo, selecionando e vendendo lixo, habitando no lixo, enfim. Ali criavam-se cães, porcos, cabritos, galinhas, ratos, cobras, crianças, inúmeras formas de vida, todas prontas para devorar qualquer objeto passível de mastigação.

Assim, graças ao bom apetite dos moradores do lixão, em breve não se via mais indício de avô ou de tio. Corpos, inclusive ossos, deglutidos, pertences expropriados, documentos destruídos ou vendidos a falsários.

Evidente que houve investigações e suspeitas, suspeitas essas endereçadas principalmente à nora, futura ex-esposa, futura ex-cunhada, pois veio ao conhecimento da polícia a investigação de sua vida sexual promovida pela família do futuro ex-marido, bem como os resultados dessa investigação. Mas não se encontrou corpo, corpos houvera, não se encontrou arma, o caso foi arquivado em aberto.

Agora lá estavam novamente os dois, pai e filha, deixando dois novos cadáveres no silêncio da noite, mais uma vez contribuindo para saciar a fome do lixão. Também deram fim no carro da defunta avó, consumido por chamas em outro ponto da cidade. Tarefa cumprida, por fim conseguiram um táxi que aceitou levar inclusive o cachorro e seguiram para casa.

Em casa, tão logo chegaram, a filha tomou um banho e foi para a cama, exausta.

Ele primeiro cuidou de alimentar e acomodar o cachorro, depois tomou uma cerveja e comeu alguma coisa. Assim que percebeu que a filha saíra do banheiro, correu até lá, trancou-se, pegou as meias usadas dela, deixadas no cesto de roupa suja, e começou, muito de leve, a aspirar-lhes o odor, a se acariciar com elas, até, finalmente, lentamente, muito lentamente, levá-las, uma após outra, à boca e saboreá-las cheio, pleno, de uma reverente volúpia. E nisso ficou, tempo e mais tempo até vir, como um cataclismo, até que afinal, de modo tanto súbito quanto gradual (é de paradoxos que a vida se faz), assolou-o o espasmo, corpo reteso, um gemido com ganas de uivo e a seguir o imenso abandono, a lassidão de uma febre.

Enquanto expelia o fluido de si entre arrancos e tremores, uma lágrima. Baixinho, bem baixinho, contrito, balbuciou o nome da menina.

14.12.7